A Redução da Maioridade Penal no Brasil.

A Redução da Maioridade Penal no Brasil.

Guilherme Schelb

Procurador da República, especialista em segurança pública.

A responsabilidade penal pressupõe a consciência e a autonomia de vontade do indivíduo. A consciência é o conhecimento ou entendimento da realidade que o indivíduo possui para agir. A autonomia de vontade significa que ao agir, o indivíduo o faz por vontade própria, e  não manipulado ou coagido.

Seria impensável chamar de “assassino” alguém que ao retirar o veículo da garagem, atropela o próprio filho que se escondera embaixo do carro. Por que ? Porque o pai não sabia (não tinha consciência) onde o filho estava. Do mesmo modo, uma criança de três anos de idade que fere com um lápis um amiguinho na escola, certamente não será considerada um “violento agressor”, ainda que tenha resultado em dano físico grave à vítima.

Crianças e adolescentes estão privados de consciência e autodeterminação em graus diferentes de intensidade, pois estão em fase de desenvolvimento. Eles carecem de amadurecimento biológico e psicológico e, por isto, necessitam de proteção, orientação e acompanhamento especiais.

Na antiguidade não era assim. Valia o princípio de que quem era capaz de fazer o mal, devia responder pelos seus atos. Não importava se o mal foi praticado “por querer” – na linguagem bem coloquial – ou se foi um acidente provocado por desatenção ou falta de cuidado. Se a pessoa causou o mal, devia responder pelo resultado danoso que causou. Este princípio se aplicava até mesmo a animais. Uma consulta ao Código de Hamurabi revelará esta prática ao leitor. Nesta questão é interessante observar que a Bíblia, muito à frente do tempo em que foi escrita, contemplou a distinção entre o homicídio doloso (desejado pelo autor) e homicídio acidental. 2

  1. A criança e o adolescente

Atualmente existe o consenso universal de que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento, carecedores de atendimento prioritário e especial, face à sua vulnerabilidade psicológica e física. 3

A adolescência é definida cronologicamente. No Brasil, inicia-se no dia do aniversário de 12 anos e finda no dia anterior ao aniversário de 18 anos. Pressupõe-se que desde o nascimento, a criança inicia um processo de desenvolvimento de consciência e vontade, que alcança sua maturidade aos 18 anos de idade, quando se torna responsável civil e penalmente por seus atos.

A Bíblia não define expressamente uma idade para a responsabilidade plena do indivíduo, mas fornece fortes indicativos de que aos 20 anos iniciava-se a idade adulta, ao determinar que:

  • somente os menores de 20 anos poderiam entrar na terra prometida, face à desobediência dos maiores. Nm 32,11 4

  • só poderiam guerrear os maiores de 20 anos. 5

  1. O contexto atual de violência urbana

A prática de atos de extrema violência por adolescentes, especialmente entre 14 e 17 anos de idade, tem despertado em diversos segmentos sociais o desejo de puni-los mais severamente, além do limite legal do ECA,  3 anos de internação. Há uma percepção empírica de que este limite de internação é inócuo para desestimular a prática de atos criminosos como homicídios, latrocínios e roubos. Propõe-se a redução da responsabilidade penal para 16 anos de idade ou até menos, como forma de desestimular a prática de crimes graves por adolescentes.

  1. As causas da violência infantojuvenil

É comum observar adolescentes e até mesmo crianças, extremamente agressivos e que não atendem a qualquer correção ou orientação, explodindo em ira ao menor sinal de descontentamento. A prática de violência é quase natural.  Quem está em contato com adolescentes assim, tende a enfatizar apenas a punição do autor da violência, embora não demonstre o mesmo interesse em analisar os seus antecedentes familiares e sociais.

Caso real – O adolescente havia cometido 6 homicídios e estava preso em unidade de internação. Durante a audiência de julgamento por um de seus crimes, ele se irritou com uma testemunha e disse em voz alta: “Vou te matar, seu safado!” Dois meses depois, o adolescente fugiu e matou a testemunha, enquanto ela dormia em casa. Ao investigar os antecedentes de vida deste violento adolescente, descobrimos que sofria maus-tratos graves desde a infância, inclusive tendo sido atendido em hospital aos 2 anos de idade com traumatismo craniano, e aos 8 sofreu grave abuso sexual, com profunda lesão anal. Interessante observar que nenhum destes casos de violência sofrida por ela na infância recebeu o encaminhamento legal adequado.

É preciso, porém, compreender e analisar o fenômeno da violência infantojuvenil a partir de suas causas. Nossa experiência há mais de 20 anos na justiça brasileira nos permite destacar três importantes fatores:

  1. a) A influência da família e dos relacionamentos (amigos, etc.)

Crianças e adolescentes são muito influenciados pelas pessoas com quem convivem. Os amigos podem influenciar profundamente o seu modo de agir e pensar, especialmente quando o convívio é intenso e sem o acompanhamento de adultos. A família, porém, é a maior influência. Pais permissivos ou rigorosos demais podem gerar filhos sem responsabilidade ou agressivos. Há estudos que demonstram que a forma como os pais tratam seus filhos tem consequências profundas e duradouras em sua vida emocional adulta.

Destaco duas atitudes da família que infelizmente, com muita frequência, contribuem  para o comportamento agressivo de crianças e adolescentes:

  1. i) abusos físicos, sexuais e psicológicos. Os abusos constituem uma das principais causas do comportamento agressivo ou violento de crianças e adolescentes. Quem sofre abuso tende a se tornar agressivo, e muitas vezes, pratica a mesma violência com os colegas e amigos. Importante salientar, que não apenas quem sofre o abuso, mas também a criança que presencia a prática da violência – ou encontra-se em situação psicológica degradante – pode sofrer transtornos psicológicos.

Caso real A criança de 5 anos praticava um ato muito incomum com os colegas de escola: introduzia o dedo no ânus dos colegas de sala. Ao investigar o caso, descobrimos que o comportamento decorria do  fato da criança assistir o irmão adolescente transar com a namorada. A experiência pornográfica gerou na criança um comportamento repetitivo na escola.

As estatísticas revelam que a maior parte dos abusos contra crianças ocorre em ambiente familiar. O autores mais frequentes são: pais, padrastos, tios e amigos da família.

Nem sempre o abuso é grave. Mas, nem por isto, menos relevante. Tomemos como exemplo as correções disciplinares. Humilhações em público ou gritos intensos não são abusos gravíssimos, mas podem causar profunda revolta e até traumas psicológicos na criança ou adolescente, tornando-se causa direta de futuros comportamentos violentos, especialmente se praticados de forma contumaz.

  1. ii) negligência. A negligência consiste na desatenção com o sustento, orientação ou educação dos filhos. Pesquisas revelam que a negligência da família pode ser ainda mais prejudicial do que abusos físicos. Embora ambos sejam degradantes para a formação criança ou adolescente, o abandono e a desatenção podem provocar maiores danos psicológicos.6

  1. b) A personalidade da criança ou adolescente

A criança ou adolescente possui uma personalidade ou caráter. Liderança e inteligência, por exemplo, são muito importantes para compreender o envolvimento dos jovens em casos de violência. Características como corajoso, empreendedor, líder ou organizado podem se referir tanto a um empresário de sucesso, como a um assaltante de bancos. O que os diferencia é para onde dirigiram suas habilidades, para o bem ou para o mal.

As famílias e professores devem estar atentos ao caráter das crianças e adolescentes, para orientá-los e direcioná-los a atitudes benéficas.

  1. c) A emoção do momento.

A maioria dos crimes não é premeditada, mas ocorre pela emoção do momento. O consumo de drogas e álcool é um dos principais fatores. Só para se ter uma ideia, 90% de todos os estupros oficialmente registrados em universidades norte-americanas ocorreram quando o agressor, a vítima ou ambos tinham ingerido bebida alcoólica ou drogas. Não é por outro motivo que cerca de 40% dos crimes ocorrem entre a noite de sexta feira e a madrugada de domingo, período de maior consumo de álcool e drogas.

É preciso considerar ainda outros fatores:

  • nos EUA triplicou a ocorrência de crimes violentos praticados por adolescentes, entre 1990 e 2000. Relevante considerar que neste país a responsabilização penal pode alcançar pessoas de até 12 anos de idade.

  • pesquisas em diversos países revelam que, independente da faixa socioeconômica, os adolescentes, especialmente entre 12 e 14 anos de idade, possuem uma tendência natural pela experiência do ilícito, especialmente pequenos furtos e agressões.

  • o maciço estímulo midiático ao consumo de drogas e álcool (filmes, músicas, propagandas, etc.) é fator importante na gênese da violência.

  • a erotização e exploração sexual de crianças e adolescentes, também é fator relevante na prática de atos violentos por crianças e adolescentes.

Seria muito mais justo e eficiente elevar o tempo de internação (prisão) de 3 para 6 anos em casos de violência praticada por adolescente. Desta forma, haveria uma punição mais severa aos casos mais graves, mas não se alteraria o princípio de pessoa em condição de desenvolvimento dos adolescentes.

Importante observar, que o movimento pedófilo é um dos maiores entusiastas da autonomia de vontade para adolescentes (e crianças também), o que é plenamente contemplado em propostas de redução da maioridade penal.

  1. Conclusão

Diante disto, a redução da maioridade penal é desaconselhável.  Primeiro, porque não irá reduzir a violência – como claramente é demonstrado no exemplo norte-americano. Segundo, porque a causa da violência não é a impunidade que se imagina decorrer da menor restrição da liberdade do ECA, mas a desestruturação familiar, os abusos físicos e sexuais na infância, e a disseminação da droga entre os adolescentes.

Os que pretendem a redução da maioridade penal estão como o piloto do fatídico avião da Tam, que se acidentou em Congonhas em 2007.7 Pretendem reduzir a ocorrência da violência (frear), sem perceber que há um enorme conjunto de forças que estimula a violência infantojuvenil (aceleram). O resultado não será diferente.


  1. Este texto foi elaborado a partir de 2 obras de minha autoria:

        “Segredos da Violência”

        “Educação Sexual para Crianças e Adolescentes: limites e desafios”.

  1. Ex 21,12-13; Nm 35,11.

  1. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 é o tratado internacional de proteção de direitos humanos com o mais elevado número de ratificações pelas países. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado (artigo por artigo), Rossato, Luciano Alves et allii, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição revista, atualizada e ampliada, p.61.

  1. Que os homens, que subiram do Egito, de vinte anos para cima, não verão a terra que jurei a Abraão, a Isaque, e a Jacó! porquanto não perseveraram em seguir-me; Números 32:1

  1. Da idade de vinte anos para cima, todos os que em Israel podem sair à guerra, a estes contareis segundo os seus exércitos, tu e Arão. Números 1:3

  1. Goleman, Daniel. Inteligência Emocional.

  1. Em 17 de julho de 2007, um airbus A320 da empresa aérea Tam acidentou-se no aeroporto de Congonha-SP, causando a morte de 199 pessoas. As investigações concluíram que uma das principais causas da tragédia foi o erro do comando, que aterrizou na pista com um manete desacelerando a aeronave, mas o outro em posição de decolagem, acelerando. Esta condição de pilotagem impossibilitou que o avião aterrizasse, fazendo-o projetar-se além da pista e chocar-se, em alta velocidade, com edifícios circundantes.

 

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